Painel Educação e Associativismo

01
O Movimento de Organização Comunitária (MOC) e seu papel propulsor da organização dos trabalhadores

Como descrito no painel intitulado Agentes Religiosos, a atuação diferenciada de padres/freiras italianos/as, ao despertar pequenos agricultores e suas famílias para questões que ultrapassavam a esfera religiosa, refletiu na politização de tais famílias no sentido da organização comunitária para as lutas por seus direitos.

É por isso que pesquisadores como Nascimento (2014), ao tratarem do episódio conhecido como “a tomada do sindicato” em Valente, referenciam o trabalho das pastorais e das CEBs como o nascedouro de um multifacetado tecido associativo e organizativo (refletido em cidades vizinhas), que teve, na sindicalização e na atuação do Movimento de Organização Comunitária (MOC), dois fortes estímulos para outros desdobramentos.

O MOC nasceu durante a ditadura militar (1967), por conta do engajamento social da Igreja católica em bairros pobres no município de Feira de Santana. Segundo Parisse (2001, p. 44), o lema ou viga central para o surgimento de tal ONG foi o “[…] sentimento de comunidade em grandes grupos através do trabalho de todos, desenvolvendo a capacidade de cada um”.

Jesus (2016) minudencia que o Movimento de Organização Comunitária despontou em 1967, depois que o padre Albertino Carneiro, primeiro diretor/fundador do MOC, foi estimulado por Dom Jackson Berenguer do Prado (então bispo da Diocese de Feira de Santana) a iniciar um “[…] trabalho comunitário através de um convênio entre a Diocese de Feira e a FASE/Federação de Assistência Social e Educacional, entidade fundada por um grupo de sacerdotes católicos em 1961 no Rio de Janeiro” (JESUS, 2016, p. 83). Este trabalho, segundo o mesmo autor, foi visto com suspeição, por conta do contexto político da época, e encontrou um importante apoio nos leigos do Movimento de Cursilhos de Cristandade, originário da Juventude de Ação Católica.

Muito provavelmente, teve Albertino como o escolhido devido às suas ações nas comunidades pobres da sede da Diocese, na Paróquia de Senhor do Bonfim, compreendendo bairros periféricos como Baraúnas e Rua Nova. […] Em vista disso, em 27 de outubro de 1967 iniciou em Feira de Santana esta nova experiência, contando com uma equipe técnica encarregada pela Diocese de assessorar o trabalho comunitário da Igreja adotando uma visão ecumênica, pois segundo Albertino Carneiro, “a fome, o subdesenvolvimento, não têm religião, precisam desta para serem superados ou pelo menos enfrentados”. (PARISSE, p. 83-84).

Parisse (2001, p. 50) explica que o MOC se tornou entidade juridicamente desvinculada da Igreja em 1970 e, no site da instituição, consta que foi se tornando autônoma, mas preservando

[…] boas relações de parceria com outras igrejas, inclusive com uma constante composição ecumênica da sua diretoria. O objetivo central do MOC foi e continua sendo despertar as pessoas para que descubram a força da sua organização na luta por seus direitos e, assim, exerçam sua cidadania. Esse trabalho teve início com o apoio ao surgimento e fortalecimento de associações comunitárias rurais e urbanas, a princípio em Feira de Santana e municípios vizinhos, todos do Território Portal do Sertão. (MOVIMENTO DE ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA, 2018).

Além de estar presente no território Portal do Sertão, o trabalho da entidade se estendeu a municípios dos territórios Sisal, Bacia do Jacuípe e Piemonte da Diamantina (MOVIMENTO DE ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA, 2018). A atuação pode ser dimensionada por meio do mapa abaixo.

02
O MOC no fortalecimento da organização dos agricultores com foco na educação

Dentre outros focos de sua atuação social, o MOC prioriza o fortalecimento da agricultura e da economia solidária junto a agricultores e agricultoras familiares; trabalha, de forma articulada, pela promoção da igualdade de gênero (atuando com mulheres rurais e periurbanas); valoriza a educomunicação e educação do campo contextualizada (contribuindo para que crianças e adolescentes tenham acesso a direitos como educação contextualizada); prima pelo incentivo ao esporte, cultura e lazer, “[…] bem como o direito à expressão de suas potencialidades criativas e participem da construção do desenvolvimento sustentável das suas comunidades” (MOVIMENTO DE ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA, 2018).

Dos diversos projetos desenvolvidos ao longo dos seus 50 anos de existência, o Comunicação pelos Direitos teve reflexos positivos em Valente e outros municípios. O projeto capacitou jovens para o mercado de trabalho, valorizando seu protagonismo e autonomia, viabilizando sua qualificação profissional e, consequentemente, gerando novos espaços de atuação na região do sisal, conforme veiculado pela instituição no ano de 2009.

Com o patrocínio do programa Desenvolvimento & Cidadania da Petrobras, o Movimento de Organização Comunitária (MOC) está iniciando as atividades do projeto Comunicação Pelos Direitos na Região Sisaleira, que vai trabalhar diretamente com 340 pessoas, entre crianças, adolescentes, jovens, educadores e comunicadores. O objetivo é contribuir para o fortalecimento dos direitos das crianças e adolescentes da Região Sisaleira da Bahia através da qualificação profissional de jovens comunicadores comunitários e da democratização da comunicação. O projeto tem atuação em dez municípios. São eles: Araci, Conceição do Coité, Ichu, Nordestina, Queimadas, Quijingue, Retirolândia, São Domingos, Serrinha e Valente. (MOVIMENTO DE ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA, 2009).

Educadoras/es e pessoas das comunidades envolvidas dão conta de que o trabalho do MOC tem possibilitado, pelos seus valores norteadores (conscientização sobre direitos, organização comunitária, educação libertadora, comunicação socialmente comprometida e democrática, equidade de gênero etc.), a proposição de ações e políticas sociais. Joelma Santos, à época coordenadora da educação do campo no município de Valente, destacou a interação do projeto Comunicação pelos Direitos.

Mesmo fazendo divisão geográfica com mais quatro municípios, a comunidade de Itareru é muito carente de ações que contribuam com o seu fortalecimento e desenvolvimento local, por isso acreditamos que a comunicação terá um papel estratégico na proposição e construção de políticas públicas que garantam o desenvolvimento. (MOVIMENTO DE ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA, 2009).

Nascimento (2008) explica que, para fortalecer estratégias de convivência com o semiárido no sentido de valorização da produção rural e da elevação da qualidade de vida dos pequenos agricultores e suas famílias, o Movimento de Organização Comunitária adotou “[…] práticas político-educativas de participação e integração social […]” (NASCIMENTO, 2008, p. 36) em três dimensões:

i) a informação, como forma de o agricultor familiar planejar de forma mais eficiente sua produção; ii) a valorização, como forma de o agricultor familiar dar eficácia distributiva aos estoques de seus produtos disponíveis na comunidade; iii) e a regulação, como forma de o agricultor familiar poder negociar no mercado, em condições menos desfavoráveis, a compra e venda de seus produtos.

Para efeito de mais reflexões e colaborações, pode-se indagar: o MOC se articula com outras entidades governamentais na Mancha Valente para viabilizar projetos e ações sociais? Por meio de quais valores e estratégias tal ONG tem atuado?

03
Premiações do MOC em ações de educação com interfaces interinstitucionais

Premiado nacional e internacionalmente e estimulando comportamentos inclusivos diferenciados nos municípios da Mancha Valente (e outros da região sisaleira), o MOC tem sido objeto de interesse de sites e outros meios de comunicação pelo reconhecimento e premiações que recebe, a exemplo do Prêmio Itaú-Unicef em 1995 pelo seu trabalho de capacitação de professores rurais.

Iniciado em 1967, o Movimento de Organização Comunitária (MOC) pretende oferecer um ensino de qualidade de acordo com a realidade vivenciada pelos alunos no campo. Para alcançar essa meta, atua diretamente com professores das escolas rurais públicas em Feira de Santana e Serrinha (BA). No começo, o MOC atuava na alfabetização de jovens e adultos. A partir de 1993, surgiu a proposta de contribuir para a melhoria da escola básica rural. Dessa forma, surgiu um programa de formação dos professores de escolas rurais. O projeto é desenvolvido pelo MOC em parceria com a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), entidades da sociedade civil e as prefeituras de 17 municípios (Araci, Barrocas, Candeal, Cansanção, Capim Grosso, Conceição do Coité, Ichú, Lamarão, Monte Santo, Nova Fátima, Queimadas, Quijingue, Retirolândia, Riachão do Jacuípe, Santa Luz, Santo Estevão e Valente). O projeto já formou 2.000 professores das áreas rurais. (EDUCAÇÃO & PARTICIPAÇÃO, 1995).

As pesquisas referenciando o trabalho da ONG em Valente (e outros municípios da Mancha em questão) dão conta de que a formação do chamado tecido associativista congregou agentes diversos, em sentidos semelhantes de atuação pelo fortalecimento e politização dos excluídos dos processos produtivos e dos direitos elementares (vida digna e saúde com saneamento básico, educação pública qualificada e socialmente comprometida, água potável e meio ambiente saudável; livre organização comunitária e sindical etc.). Santos (2009, p. 8) dá conta disso.

A partir da reflexão sobre os problemas da família, do trabalho e do bairro, as CEBs ajudaram a criar movimentos sociais para organizar sua luta: associações de moradores, luta pela terra e também o fortalecimento do movimento campesino. Na região do sisal, as CEBs influenciaram a criação de muitos movimentos sociais, alguns deles como a Associação dos Pequenos Produtores do Estado da Bahia (APAEB), o Movimento de Organização Comunitária (MOC), a Fundação de apoio aos trabalhadores Rurais da Região do Sisal (FATRES) e a rearticulação dos STRs. Dentre todo o tecido associativo e organizativo atuante na região do sisal, destaco alguns para exemplificar os novos discursos que se produzem no e sobre o lugar.

Apesar de o gérmen da conscientização/politização e do sentido de organização comunitária ter sido o trabalho de agentes religiosos e leigos por meio das CEBs, pastorais e do MER, lideranças e pesquisadores/as reiteram a importância do surgimento do MOC e da sua atuação (COELHO NETO, 2014, p. 261) na continuidade de tal processo. Isso porque a entidade brotou de uma vertente própria politicamente engajada da Igreja, e os valores dos agentes religiosos (que atuaram em Valente e região entre o fim da década de 60 e o início dos anos 80 do século XX) eram comuns aos idealizadores do MOC, também padres, como já visto. Foi no mesmo contexto das dificuldades enfrentadas pelo povo mais pobre, portanto,

[…] que as organizações não governamentais vinculadas ao meio rural sertanejo baiano surgiram e logo se associaram ao movimento popular, com o qual tiveram um papel destacado na luta pela democracia. O Movimento de Organização Comunitária (MOC) é uma dessas experiências brasileiras de mais longa duração na articulação de atores sociais rurais. (NASCIMENTO, 2008, p. 36).

Nascimento (2000, p. 47) atribui ao MOC um papel decisivo na passagem de um processo de “[…] convivialidade simples (coesão primitiva e participação limitada) para formas organizacionais mais complexas (coesão social e participação ampliada)”. Ele confere a chamada “primeira fase” às CEBs/pastorais, e a segunda, ao MOC, no sentido de uma atuação organizativa mais complexa e de maior alcance via projetos sociais. Nas palavras do pesquisador, “[…] a atuação da entidade é considerada como um elemento de inflexão no movimento de transformação social impresso nesse recorte regional nas últimas quatro décadas” (NASCIMENTO, 2000, p. 47).

Os marcos/processos geradores do associativismo se imbricaram em Valente e região. Quanto a esse município em particular, o trabalho dos padres/freiras italianos/as e do MOC preparou terreno para outra organização não governamental que marcaria os anos seguintes de forma contundente, a APAEB. O Instituto Brasileiro de Administração Municipal (VERDE, 2007), referenciando Oliveira e outros (2000), esclarece isso no estudo de caso sobre a Associação de Pequenos Agricultores do Estado da Bahia.

No município de Valente, através da organização de pequenas comunidades rurais, foram criadas as bases para a organização da sociedade civil voltada para a dinamização da economia regional e para a transformação das relações sociais vigentes. As lideranças populares locais que conceberam e implementaram o projeto APAEB surgiram com o apoio da Igreja Católica, através da Pastoral Rural, e do Movimento de Organização Comunitária – MOC. (OLIVEIRA, 2000 apud VERDE, 2007, p. 12).

Ante o exposto, indaga-se: de que forma se deu, do ponto de vista prático, a articulação desses diversos agentes (lideranças, entidades, cidadãos/ãs outros/as) para a formação do tecido associativista na Mancha Valente? Houve a colaboração de associações e outras entidades representativas ou sociais de municípios próximos a Valente? De que maneira houve a organização comunitária e representativa para a chegada do MOC à região e o surgimento da APAEB?

04
A formação de uma cultura associativista na Mancha Valente

Na Mancha Valente, observou-se, a partir da década de 60 do século XX, a progressiva formação de um conjunto de associações que promoveu uma dinâmica sociocomportamental diferenciada de organização comunitária pela luta/conquista de direitos sociais e melhor distribuição de renda entre pequenos agricultores e suas famílias.

O associativismo, nesse sentido, viabilizou que tal organização comunitária se fortalecesse de forma instrumentalizada juridicamente e mais adequada à consecução dos fins motivados por valores comuns, pois

[…] é fruto da luta pela sobrevivência e pela melhoria das condições de vida de comunidades. Associação é uma pessoa jurídica, devidamente registrada em cartório e constituída livremente pela união de pessoas. Essa união acontece pra melhoria das condições de vida do grupo e da comunidade. A participação, a solidariedade e a cooperação em torno de objetivos comuns têm sido fundamentais para assegurar melhores condições de vida das comunidades. Essa prática, mais do que uma forma de organização, é uma construção e uma conquista social. (INCUBADORA SOCIAL, 2015).

O surgimento de uma rede associativista na Mancha Valente (em defesa dos direitos e da melhoria da qualidade de vida dos pobres) contou com a colaboração e a interação de diferentes agentes (SANTOS, 2009, p. 8). Inclui-se aí a atuação de padres/freiras italianos/as, do sindicato dos trabalhadores rurais, e o trabalho do MOC e de outras entidades, a exemplo da APAEB. Esta associação, segundo Coelho Neto (2014, p. 264), constitui a experiência associativista “[…] de maior êxito em termos de resultados econômico-produtivos e socioespaciais […]”, como melhor descrito no painel Economia e Cooperativismo.

Magalhães e Abramovay (2007) tratam de tal processo associativista, evidenciando a inter-relação entre os referidos agentes a partir de valores comuns (organização comunitária, politização de pequenos agricultores, justiça social) que, adiante, refletiriam no âmbito das relações econômicas na Mancha Valente.

1) a Igreja promoveu um processo de mudança no padrão tradicional de relações sociais com os mercados; 2) posteriormente, a organização das associações comunitárias e dos sindicatos possibilitou a continuidade de relações tradicionais e o acesso a novos mercados orientados por uma nova cultura política; e 3) o trabalho educativo da Apaeb, uma organização não governamental formada no âmbito das Comunidades Eclesiais de Base, ampliou a capacidade de cálculo e de planejamento tanto da vida produtiva como da vida doméstica dos sertanejos. (MAGALHÃES; ABRAMOVAY, 2007, p. 111).

A década de 1960, segundo Coelho Neto (2014), foi embrionária para a formação do associativismo em Valente e em municípios vizinhos. Nesse período, brotaram organizações comunitárias mais primárias decorrentes da atuação de sujeitos individuais (agentes religiosos italianos, lideranças rurais etc.) e se verificou o surgimento do sindicalismo, que o autor caracteriza como um fenômeno social expressivo, decorrente da

[…] criação dos sindicatos de trabalhadores rurais dos municípios sisaleiros nos anos 1960-70. Nos anos 1960, começam a aparecer, também, as primeiras experiências de associativismo, de natureza comunitária, predominantemente nos povoados. (COELHO NETO, 2014, p. 261).

O associativismo se revela, portanto, dinâmico e inter-relacionado, em “[…] direção a um lugar melhor pela cooperação. O desenvolvimento é um processo também fundado em relações sociais associativas, das quais podem nascer formas cooperativas” (FRANTZ, 2002, p. 25). Nesse sentido, segundo Cosac e Leonello (2008, p. 5), o associativismo colabora para a sedimentação de comportamentos politizados e práticas mais solidárias, calcadas em valores comunitários, familiares e outros, munindo juridicamente a comunidade de “[…] mecanismos que concretizam as demandas sociais e que tornam os homens mais próximos da busca de autonomia na promoção do desenvolvimento local”.

Magalhães e Abramovay (2007) explicam que, embora o ideário politizador plantado pela atuação de agentes religiosos e fortalecido pelo sindicalismo na Mancha Valente objetivasse libertar pequenos agricultores e suas famílias da pobreza decorrente da concentração de renda, os valores sedimentados e refletidos no binômio “fé engajada e associativismo” não propunham a ruptura com bases fundamentais ou tradicionais (parentesco, família, comunidade etc.). Pelo contrário, estimularam a mantença dos vínculos de afeto, dos comportamentos de ajuda mútua e, portanto, fortaleceram a união familiar e o sentido de organização comunitária politizada e instrumentalizada, via associações, para as lutas por melhores condições de vida.

Uma combinação de tradição e modernidade passou a caracterizar, então, a vida comunitária deste território. A modernização da vida rural não provocou – ao contrário do que ocorrera em outros processos de incorporação de comunidades à esfera da economia moderna – a desestruturação das relações tradicionais, nem o enfraquecimento das relações de cooperação. Ao contrário, somou-se, ao objetivo das antigas tradições comunitárias (que era integrar seus membros num tipo de economia semifechada), o papel das associações comunitárias de constituir elos de conexão entre as comunidades e as redes externas. A partir dessas relações de cooperação, que garantiam condições mínimas de sobrevivência, foram forjadas relações associativas que permitiram novas conexões com o mercado. (MAGALHÃES; ABRAMOVAY, 2007, p. 111).

Ante o exposto, pode-se questionar:

    • Como essas bases de valorização da tradição (fortalecimento da família, dos vínculos comunitários, da cooperação em prol de interesses comuns dos grupos) se adaptaram, na Mancha Valente, à chamada modernidade, marcada por comportamentos mais individualistas ou imediatistas?
    • Os valores comuns ou semelhantes disseminados desde a chegada dos padres/freiras italianos/as, reforçados pelo sindicalismo e pelo associativismo, ainda se mantêm perceptíveis nas dinâmicas sociocomportamentais das entidades não governamentais, lideranças rurais, pequenos agricultores e cidadãos/ãs comprometidos/as com o social em Valente e municípios vizinhos?
    • De que forma se pode exemplificar a permanência ou o distanciamento de tais valores para análises ou proposições mais precisas do ponto de vista qualitativo?

     

05
A formação de uma cultura associativista na Mancha Valente

A Associação dos Pequenos Agricultores do Estado da Bahia (APAEB) surgiu no ano de 1980, e suas sedes ou filiais se distribuíram por cinco municípios baianos: Serrinha, Araci, Feira de Santana, Ichu e Valente. Segundo Carvalho Neto e Fantini (2005, p. 3), “[…] este primeiro nome da Associação, que originou a sigla APAEB, foi mudado para Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira. No entanto, a sigla foi mantida por ter se tornado uma ‘marca’”.

A APAEB surge da experiência impactante e apoio fundamental do Movimento de Organização Comunitária (MOC) (SANTOS, 2010), com o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar. Na época de sua fundação, o país passava por uma transição estrutural do ponto de vista político e econômico que abria uma janela de oportunidade para se construir um padrão de desenvolvimento com menores índices de pobreza e melhor distribuição da riqueza. Ou seja, pulsava a esperança de construir um país menos desigual¹ , rompendo uma herança do padrão de desenvolvimento por substituição de importações² , que, já no ano de 1980, apontava sinais de esgotamento.

Assistia-se a uma diminuição na repressão e a um processo de abertura/redemocratização e de fortalecimento dos movimentos sociais que lutavam para construir, no Brasil, um conjunto de leis e políticas públicas capazes de sedimentar um padrão de desenvolvimento com inclusão social e sustentabilidade ambiental, isto é, uma sociedade menos desigual com políticas semelhantes às da social democracia europeia. Além de tal fortalecimento dos movimentos dentro do país, na década de 1980, instituições internacionais como Banco Mundial, BID e ONGs tinham, dentre seus objetivos, programas para ajudar, tanto financeiramente como tecnicamente, a solucionar a pobreza e a desigualdade em países como o Brasil, considerados em desenvolvimento, mas que possuíam muita desigualdade e pobreza.

Fora este processo, a realidade local era difícil para que a população pobre (a maioria na região nordestina) lograsse uma mobilidade social ascendente. O que se via era uma dependência de atravessadores, o que implicava baixos preços pagos pelos produtos da agricultura familiar – sisal, feijão, mandioca etc. –, bem como a falta de política pública voltada para a emancipação econômica dessa população pobre. As secas constantes, a incapacidade de o pequeno agricultor conviver com tal problemática, a baixa escolaridade da maioria, as condições precárias de saúde, moradia e saneamento constituíam desafios e entraves à redução da pobreza.

O Nordeste – a Mancha Valente igualmente, por nele estar inserida – participava, na divisão nacional do trabalho, como fornecedor de força de trabalho com baixa qualificação e consumidor de bens finais produzidos nas regiões mais ricas do país (periferia do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e baiano). Isso se dava por meio de uma superexploração do trabalho, permeada por endividamento dos pequenos agricultores, desemprego, fome, seca e outras mazelas. Quanto a Valente e região:

Esse ambiente compõe um ethos social que não estimula a inovação, não facilita a busca de novas organizações econômicas e reproduz uma longa condição precária de acesso a mercados, a financiamentos, à produção e à própria sobrevivência. Como consequência, observa-se o endividamento permanente dos agricultores e a manutenção de sua condição de pobreza e de subordinação política e social. A conquista da autonomia de uma parcela expressiva de agricultores familiares, da sua capacidade de buscar novos mercados, de criar organizações que reduzam seus custos e a melhor organização da sua vida financeira tornou-se possível, recentemente, graças à formação de diversas organizações, entre elas as que representam o apogeu do processo de racionalização, as cooperativas de crédito. Tais organizações – como é próprio da racionalidade econômica – são frutos de um longo processo de desencantamento. O interessante é que esse processo foi construído passo a passo pelas Comunidades Eclesiais de Base, pelos sindicatos de trabalhadores e pela Associação dos Pequenos Agricultores da Bahia – Apaeb. (MAGALHÃES; ABRAMOVAY, 2007, p. 111).

Os pesquisadores/as da região reconhecem que o surgimento da Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira, principalmente após a municipalização da entidade, como em Valente, gerou certo incômodo em parcela historicamente concentradora de poder político-econômico local. Isso ocorreu devido ao sentido de promoção de autonomia dos pequenos agricultores e suas famílias, apoiando-lhes não somente no beneficiamento do sisal, mas em ações de natureza educacional no campo, pela disseminação de valores solidários e sustentáveis. Santos (2012, p. 26), por exemplo, explica que “[…] a APAEB concebe a Região Sisaleira como uma região com grande potencial, que necessita da valorização de seus produtos para a sua modernização e desenvolvimento, utilizando assim elementos endógenos”. Tal pesquisadora, em outros trabalhos (2002, 2007, 2010), destaca a relevância desta associação em variados âmbitos, sua influência na reorganização espacial do município de Valente, no desenvolvimento da região sisaleira e sua correlação com outras entidades que a apresentam como modelo a ser seguido.

Notas:
¹O padrão de desenvolvimento adotado pós 1964 pregava que era necessário “crescer o bolo para, depois, distribuir”, e isto seria feito com um forte processo de industrialização, ou seja, o crescimento econômico era garantia de uma sociedade menos desigual. No entanto, não foi o que ocorreu, e, em 1980, o Brasil detinha o oitavo PIB mundial com um complexo parque industrial, baseado na segunda revolução industrial. Por outro lado, do ponto de vista social, era um país mediano, sendo que a sua Região Nordeste, onde se localiza a Mancha Valente, tinha indicadores compatíveis aos dos países mais pobres do planeta. Do ponto da desigualdade da renda, o país tinha a terceira pior distribuição de renda do mundo.
²Este modelo foi concebido entre as décadas de 1960 e 1970 pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). A filosofia baseava-se na defesa de que, para haver desenvolvimento nas economias do Terceiro Mundo, era necessária a adoção da política de substituição de importações. Esta política visava à proteção da produção nacional com garantia de mercado, na hipótese de que a sua implementação permitiria a acumulação de capitais internos que poderiam gerar um processo de desenvolvimento autossustentável.
06
A municipalização da APAEB em Valente

A Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira passou, no final da década de 1980, por um processo de municipalização para lidar com questões/desafios específicos e ampliar sua autonomia gerencial local, a fim de que cada APAEB, segundo explicam Carvalho Neto e Fantini (2005, p. 4-5),

[…] pudesse se dedicar especificamente aos problemas que enfrentava em seu dia-a-dia. Assim, foram efetivadas, em 1986, as diretorias municipais da APAEB nos mesmos cinco municípios em que havia antes as sedes. A descentralização foi uma forma não só de facilitar a atuação das diversas sedes, como também de melhorar as expectativas dos associados com relação à entidade, que dependeria não mais de uma administração regional, mas sim de esforços locais.

Tais autores explicam que, quando a Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira era centralizada (com filiais/sedes em Serrinha, Feira de Santana, Araci, Ichu e Valente), sua viga propulsora era o MOC, sem o qual a associação não se mantinha. Relatam que houve alguns entraves/conflitos sobre como compatibilizar o ideal de luta social com a necessidade do enfoque econômico de apoio aos pequenos agricultores. Também se discutiu até que ponto os pequenos agricultores teriam participação direta no gerenciamento das atividades ou se seria necessário profissionalizar, tecnicamente, a gestão, o que se verificou no caso da APAEB de Valente como diferencial.

Tais problemas funcionaram como um fator de seleção natural das unidades da APAEB, fazendo com que todas apresentassem maus resultados no início e apenas as melhores geridas pudessem se recuperar completamente. Foi em grande parte devido a isso que a sede de Valente se destacou, pois, desde o início (apesar do mau desempenho financeiro inicial e do reduzido número de associados, semelhantes aos dos outros municípios), praticou uma gestão mais comprometida e soube utilizar de maneira eficiente os poucos recursos de que dispunha, não gastando com a compra do terreno da sede (que foi obtido a partir de doação) nem com a construção do prédio, utilizando-se de mutirão para isso. Ações com essa levaram a APAEB-Valente a ser a primeira sede a se sustentar sem o apoio do MOC. (CARVALHO NETO; FANTINI, 2005, p. 4).

O IBAM (VERDE, 2007, p. 12) documenta que a filial da associação em Valente foi instalada em 1981 “[…] e, diferentemente das que se implantaram em outros quatro municípios […], procurou intervir, de imediato, na economia local”. De logo, fundou um posto de vendas, pequeno ponto de comércio que viabilizou a aquisição, pelos pequenos agricultores, de produtos da cesta básica por preços diferenciados e o armazenamento “[…] dos excedentes de sua produção, para que pudessem vendê-la sem precisarem submeter-se às negociações desiguais com os intermediários” (VERDE, 2007, p. 12). Em 1984, houve a implantação de uma batedeira de sisal, a fim de “[…] aumentar o poder de barganha do produtor junto aos compradores, bem como eliminar a influência dos atravessadores no processo de venda do sisal” (VERDE, 2007, p. 12). Em 1990, foi criada a poupança APAEB, na qual os “[…] pequenos agricultores depositavam suas pequenas economias numa conta administrada pela entidade, servindo de capital de giro para as atividades de comercialização da Associação” (VERDE, 2007, p. 13). Isso fez brotarem as primeiras experiências de crédito orientado. Finalmente, em julho de 1991, houve a municipalização da APAEB,

[…] com sua transformação em Associação dos Pequenos Agricultores do Município de Valente – APAEB, permitindo maior organicidade e eficácia das ações locais desenvolvidas: a) Batedeira, que permitia o beneficiamento e a comercialização do sisal; b) Posto de Vendas, que fornecia os produtos de primeira necessidade aos pequenos produtores e pretendia viabilizar a comercialização do excedente de sua produção; c) Assistência Técnica aos pequenos produtores rurais com a perspectiva de oferecer alternativas de convivência com o semiárido; d) Processo de organização de parcerias com outras entidade e movimentos aliados locais: Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Igrejas e Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais. (VERDE, 2007, p. 13).

A APAEB de Valente teve, a partir da municipalização, maior autonomia e poder de articulação. As parcerias passaram a ocorrer com entidades estratégicas de variados níveis, como Cebemo, da Holanda; Inter American Foundation, dos EUA; Companhia de Ação Regional do Governo do Estado da Bahia (CAR); STR; Organização para a Cooperação Internacional a Projetos de Desenvolvimento (Disop); Fundação W.K. Kellogg; Fundação Schwab; Volens/Itinerans; Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão (Anteag), dentre outras. Do ponto de vista dos apoios e projetos internacionais, a oportunidade de levar conhecimento/experiências locais e de se conectar com redes diferentes de informações globais (cada projeto com suas especificidades) capacitou, ainda mais, a entidade. Isso fortaleceu a sua missão e o seu leque de atuação em Valente especialmente, nos demais integrantes da Mancha e em outras cidades da região sisaleira.

No processo de fundação e municipalização da associação, fruto de movimentos sociais e reivindicações de pequenos agricultores, destaca-se a atuação do empreendedor social valentense Ismael Ferreira de Oliveira³. Somando-se os esforços de outros associados e associadas, foram possíveis mudanças/impactos sociais positivos nas vidas de muitos pequenos agricultores e suas famílias em dupla face: “[…] uma econômica, voltada para as atividades do agronegócio – produção e comercialização – e, outra, social, representada por atividades de melhoria das condições de vida da população local envolvida” (VERDE, 2007, p. 25).

Notas:
³Ismael Ferreira é dos entrevistados por este Projeto 7 Municípios, cujo vídeo está disponível na plataforma SEI Colab. Outros aspectos de sua vida e ativismo social podem ser lidos na entrevista concedida ao Museu da Pessoa: http://www.museudapessoa.net/pt/conteudo/historia/ismael-ferreira-de-oliveira—historia-de-mudanca-texto-integral-46806.
07
Fundação APAEB: sustentabilidade, solidariedade e coparticipação

Em 1992, foi criada a Fundação Educadora de Desenvolvimento da Região Sisaleira, pleiteando a concessão para uma rádio e uma emissora de televisão socioeducacionais (objetivo alcançado anos depois). Em 2007, a entidade passou a ser denominada Fundação de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira (Fundação APAEB), cujo primeiro projeto aprovado, no mesmo ano, foi a construção de 146 cisternas comunitárias em alguns municípios.

Com a missão de promover o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar via ações educativas, solidárias e de cooperação, a fundação, cujo trabalho conjunto com a associação potencializou o projeto social de ambas, vem desempenhando/mantendo um papel ancorado na valorização da dignidade humana, da função social do trabalho e dos princípios da autonomia, democracia, isonomia, solidariedade e cooperação. Entre seus vários projetos já executados, destacam-se os relacionados às áreas de “[…] Assessoria Técnica e Extensão Rural, Cultura, Inclusão Digital, Formação para a Convivência com o Semiárido, Formação e Assessoria para grupos de produção, recuperação da lavoura do sisal e outras” (ASSOCIAÇÃO DESENVOLVIMENTO SUSTETÁVEL E SOLIDÁRIO, 2019, p. 1).

Esses projetos contribuíram para o desenvolvimento das famílias e de suas unidades produtivas, bem como para fortalecer a identidade e a autonomia da Fundação APAEB nos territórios onde ela atua, qualificando sua equipe de trabalho, melhorando sua infraestrutura e possibilitando o desenvolvimento de estratégias de comunicação e marketing institucional que evidenciam sua identidade junto aos parceiros e a comunidade. (ASSOCIAÇÃO DESENVOLVIMENTO SUSTETÁVEL E SOLIDÁRIO, 2019, p. 1).

Na seara educacional, destaca-se a Escola Família Agrícola Avani de Lima Cunha (EFA/Valente), inaugurada em 1996. A escola possibilita o aprendizado do campo no próprio campo (sem exclusão dos conhecimentos de outras ordens), pedagogicamente ancorado em valores assentados nas histórias de vida dos próprios alunos e alunas, a partir de suas bases, contextos familiares e origens. Localizada na Fazenda Madeira/Valente (zona rural), de propriedade da APAEB, a EFA/Valente é direcionada a filhos/as de pequenos agricultores, cujo “[…] projeto faz parte de um conjunto de escolas, nacionais e internacionais, que compartilham a mesma filosofia: a de aliar o ensino teórico à prática” (VERDE, 2007, p. 15). Sua inspiração central é a pedagogia da alternância, que “[…] intercala períodos de internação dos alunos na escola com períodos em casa, onde eles têm a chance de pôr em prática alguns dos conceitos aprendidos, com acompanhamento periódico da escola” (VERDE, 2007, p. 15).

A APAEB desperta a atenção de pesquisadores/as, entidades e segmentos variados pelo fato de ter alcançado resultados muito relevantes, em contraponto a tantas regiões com características e dinâmicas bem mais favoráveis que não abrigaram um caso de tamanho sucesso/reconhecimento. A associação foi ganhando uma dimensão positivamente diferenciada numa cidade do semiárido baiano (e entorno) antes sem tanto destaque. A entidade promoveu resultados exitosos nas vidas de pequenos agricultores e suas famílias (com reflexos socioeducacionais mantidos), firmou parcerias nos âmbitos nacional e internacional, introduziu e estimula, permanentemente, um novo modo de operar com o sisal. Isso acabou impactando as relações socioeconômicas e gerando visibilidade/veiculações midiáticas para o município de Valente e outros da Mancha.

Em tal dinâmica, a Fundação APAEB cumpre um papel de relevo quanto à retroalimentação dos valores ancorados no projeto sociopolítico-educacional da entidade, incentivando os comportamentos socialmente diferenciados identificados na comunidade valentense e seu entorno. O processo de formação/intensificação (com os agentes religiosos italianos e a subsequente atuação do MOC), a politização nas bases, a sustentabilidade e a autonomia dos pequenos agricultores e suas famílias se mantêm como diferenciais.

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APAEB promove mudanças comportamentais na Mancha Valente

O sucesso e a continuidade dos trabalhos da APAEB/Valente devem-se, em primeira análise, à constatação de que, de sua fundação para cá, a entidade mantém viva a sua missão nos trabalhos junto aos pequenos agricultores e suas famílias. Ela conta também com um braço educacional que retroalimenta os valores disseminados e cultivados, dentre os quais a sustentabilidade, a solidariedade e a coparticipação. Neste sentido, a ONG conseguiu vencer obstáculos e se tornar, nacional e internacionalmente, um case de referência.

Carvalho Neto e Fantini (2005, p. 4) atribuem à sua gestão comprometida, eficiente e técnica, alinhada com sua missão/valores, o sucesso da APAEB/Valente. Ao contrário de um sentido concorrente ou de lucro, como nos antigos modos de lidar com o sisal (processo pelo qual a exploração do trabalho dos pequenos agricultores não lhes gerava rentabilidade digna), a ONG inaugurou uma progressiva e diversificada gama de atividades sob o valor da sustentabilidade solidária. Assim, obteve uma “[…] retomada bem sucedida das atividades da cadeia do sisal (tradição da região, que se encontrava em declínio durante a década de 1980), como também pela grande capacidade que demonstrou de coordenar tantas atividades e tão diversas entre si” (CARVALHO NETO; FANTINI, 2005, p. 5). Paralelamente, promoveu, de forma social e tecnicamente eficiente, uma mudança no comportamento ou padrão cultural com a introdução de uma

[…] racionalidade econômica dos agricultores. O trabalho de capacitação e assistência técnica e as primeiras organizações financeiras desenvolvidas pela Apaeb levaram a uma importante transformação na visão dos agricultores sobre o clima e sobre os recursos naturais do sertão, como também provocaram importantes mudanças no comportamento econômico dos sertanejos. (MAGALHÃES; ABRAMOVAY, 2007, p. 113).

Em outras palavras, a “[…] introdução de uma prática de planejamento e de inovações tecnológicas entre os agricultores, o que vem ampliando suas habilidades na gestão dos recursos naturais e financeiros […]” (MAGALHÃES; ABRAMOVAY, 2007, p. 113), fez da APAEB de Valente uma ONG exitosa. A entidade não se desviou do seu objetivo de promover o desenvolvimento da agricultura familiar, mesmo ancorada num produto que, ao longo dos últimos 50 anos, sofreu a concorrência do material sintético, enfrentou crises e sobreviveu.

Sua atuação, desde a municipalização e crescente estruturação, com reflexos na Mancha Valente, atraiu olhares da grande mídia (documentários/matérias em jornais impressos, televisionados, sites etc.). Assim, se ganhou “[…] visibilidade nacional concedida a questões locais, como a luta contra o trabalho infantil e os esforços de recuperação da cadeia do sisal, por intermédio de iniciativas concentradas nos municípios” (CARVALHO NETO; FANTINI, 2005, p. 5). Segundo Verde (2007, p. 41-42), o que tornou o projeto da APAEB único, a ponto de ser considerado uma melhor prática ou um caso de sucesso, foram os seguintes fatores:

a) Surgiu e desenvolveu-se a partir dos movimentos de comunidade de base. b) Teve como foco principal as questões sócio-econômicas em torno de um produto agrícola de pouca expressão econômica em termos nacionais, o sisal, porém de grande importância social para a região do semiárido da Bahia e do Nordeste, onde é produzido. c) Por situar-se, ainda, em uma região considerada de escassos recursos naturais e de baixo potencial econômico, o sucesso do projeto foi surpreendente, alcançando resultados e tomando dimensões inimagináveis em sua trajetória de quase 30 anos. d) Propiciou o surgimento de lideranças que, por sua persistência e determinação, concretizaram as iniciativas coletivas e abriram espaço na economia local para a economia solidária e a transformação das condições sócio-econômicas da população local. e) A Associação consolidou-se praticamente sem apoio governamental. Para alguns representantes da APAEB, os fatores de sucesso do projeto foram a ousadia de querer fazer, o compromisso com a causa, a dedicação, o envolvimento dos agricultores e a participação de todos.

A entidade revela, portanto, grande importância social por apoiar diretamente um número expressivo de agricultores e suas famílias e, com a ampliação do seu leque de atuação, não ter se limitado aos seus associados. Ela não pode ser considerada apenas uma cooperativa de produção, porque, ao longo do tempo, suas atividades foram muito além deste objetivo inicial, que era organizar os produtores de sisal para melhorar sua participação no mercado. Como exemplo de uma das tantas intervenções pelas quais a instituição revelou o seu caráter educacional e socialmente comprometido com o homem e a mulher do campo, Magalhães e Abramovay (2007) mencionam o lançamento, em 1995, do Programa de Convivência com a Seca,

[…] cujas diretrizes básicas eram o reordenamento da unidade produtiva familiar, o aproveitamento racional das áreas agrícolas, a preservação do meio ambiente, o gerenciamento das atividades tendo como parâmetro o mercado, a captação e o armazenamento de água, inovações tecnológicas para o armazenamento de alimentos (silos, feno, bancos de proteínas), o rebaixamento da caatinga, o aproveitamento da energia solar, o crédito e a assistência técnica. (OLIVEIRA, 2002 apud Magalhães; Abramovay, 2007, p. 113).

Ante a constatação de que a APAEB/Valente se constituiu em um dos agentes responsáveis pela menor pobreza na Mancha Valente, deixam-se alguns questionamentos como convites às colaborações dos leitores/as:

    • O que tornou a APAEB de Valente diferenciada das demais e um exemplo de entidade exitosa em face de outras ONGs inseridas em contextos semelhantes ou até mais favoráveis? Em outras palavras, por que esta entidade cresceu e se consolidou numa região pobre, com agricultores pobres e um produto que se constitui numa commodity (pouco importante tanto politicamente como economicamente nos cenários global, nacional e regional)?
    • O projeto político-social dos fundadores e apoiadores da entidade impactou (ou impacta) o comportamento das pessoas, gerando valores de cooperação, solidariedade, autonomia, sustentabilidade, atitude proativa, empreendedora e inovadora?
    • Quais aprendizados podem ser extraídos desta experiência exitosa para elaboração de políticas públicas, dado o atual padrão de desenvolvimento do capitalismo mundial, brasileiro e baiano?
    • A APAEB de Valente formou uma espécie de território próprio – ancorado no seu projeto sociopolítico-econômico de desenvolvimento – dentro da região sisaleira, extrapolando a Mancha Valente quanto aos impactos da sua atuação diferenciada de tantas outras associações?

     

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Referências

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