Aspectos educacionais e culturais são elementos importantes para compreender o processo de formação de uma sociedade, principalmente do ponto de vista da conformação dos hábitos e costumes locais. Tratando-se especificamente do estudo proposto, acredita-se que a trajetória da implementação da educação pode ter contribuído para a conformação diferenciada da Mancha Azul, em termos de uma menor incidência de vulnerabilidade social. Aspectos de natureza pedagógica e cultural podem ter provocado efeitos de longo prazo, os quais, ao serem absorvidos pela sociedade local, contribuíram para que específicos padrões de conduta cotidiana se consolidassem e se perpetuassem ao longo das gerações. Tais padrões podem ter colaborado para a manutenção de costumes que implicaram benefícios coletivos do ponto de vista da saúde, da formação moral e das relações sociais. Para uma melhor compreensão dessa hipótese, buscou-se analisar a trajetória de desenvolvimento da educação nessa região, tentando identificar de que maneira esse elemento foi relevante para a consolidação da Mancha Azul.
No final do século XIX foram identificados investimentos relevantes na área de educação no estado da Bahia do ponto de vista da modernização das ideias e transmissão do conhecimento e dos pensamentos que vinham se desenvolvendo na Europa. Todo esse leque de influências das ciências e da filosofia europeia repercutiu no Brasil, inspirando os ensinos e as formações escolares na Bahia. Um exemplo disso pode ser visto no início da implantação das escolas normais na França, durante a fase do Iluminismo, na primeira década do século XIX. Essa tendência veio a se refletir na Bahia em 1840, quando da chegada do pensamento iluminista ao país, levando também à construção de escolas normais no estado. Uma dessas escolas foi erguida no município de Caetité, no final do século XIX. Acredita-se que tais influências podem ter sido importantes para a formação da população local e regional, tendo em vista o grau de centralidade do município nessa época. Tais inspirações podem ter colaborado para formar um comportamento social diferenciado nessa região, contribuindo para a conformação da Mancha Azul.
Criada pela Lei de 1895 e inaugurada em 1898, a primeira escola normal de Caetité foi fechada em 1903, por questões de conflitos políticos entre o maior responsável pela sua criação, Deocleciano Teixeira, e o então governador da Bahia, Severino Vieira (SANTOS, 1976, p. 31).
Nos estudos realizados por Santos (2010), identificam-se trechos de A Penna, principal jornal de Caetité na época, nos quais é ressaltada a importância do desenvolvimento educacional da população local, que implicaria transformações e aperfeiçoamento de hábitos, trazendo melhorias da qualidade de vida e aumento da produtividade no campo. Em um desses trechos lê-se: “[…] faltam-nos uma severa educação do proletariado, em ordem a ser radicado em nosso meio o habito de melhores e mais consentâneos methodos de trabalho” (A PENNA, 1914 apud SANTOS, 2010, p.10). Somado a isso, foi possível notar que a força da intelectualidade de Caetité à época se expressou em algumas personalidades, inclusive religiosas, que empreenderam ações voltadas para a área da educação.
Segundo a professora Jaci Menezes, houve uma forte mobilização pela questão da educação, com intensa movimentação política por verbas, legislação, etc. A partir da década de 1920/30 Anísio Teixeira dá seguimento a esse movimento, o qual gradativamente defendeu a escola pública de qualidade. (veja o vídeo)
Segundo pesquisas realizadas por Fernanda Matos, doutoranda da UESB, desde o século XIX até as primeiras décadas do século XX, as principais lideranças de Caetité gostavam de ser identificadas como intelectuais letrados, a exemplo do médico Deocleciano Teixeira, um dos responsáveis políticos pela criação da primeira Escola Normal de Caetité.
Além disso, durante o início do século XX, a presença do Estado no interior do Brasil ainda era pequena, de tal modo que a presença e atuação das igrejas nesses espaços eram relevantes como forma de manutenção não apenas da fé, mas também da ordem social local, principalmente através da educação, área em que suas influências se mostravam bastante fortes, estabelecendo um sólido laço com o ensino local. Segundo Matos, a presença dos intelectuais de dentro e fora da Igreja foi de grande importância no suprimento das carências resultantes dessa ausência do Estado, no que tange às suas atribuições republicanas, tendo em vista que foram eles que assumiram grande parte da responsabilidade dos governos. (veja o vídeo)
Nesse período foram criadas instituições importantes na cidade de Caetité, como a Escola Americana, vinculada à Igreja presbiteriana, que posteriormente esteve ligada ao Colégio 2 de Julho, em Salvador, e ao Colégio São Luis Gonzaga, vinculado à Igreja católica e que funcionou até 1924. Entretanto, foi através da figura de Anísio Teixeira, filho de Deocleciano Teixeira, que a educação de Caetité ganhou destaque, tendo em vista que ele foi responsável pela reabertura da escola normal e, posteriormente, pela criação do Instituto Anísio Teixeira, durante a década de 1920.
Ainda segundo Fernanda, a escola coordenada pela Igreja Presbiteriana na região tinha um ensino bastante moderno e de alta qualidade, obedecendo às características pedagógicas das suas outras sedes da época (em São Paulo e nos Estados Unidos). Era possível identificar essas diferenciações através da didática, da metodologia e do ensino de línguas praticados.
A escola normal tinha como objetivo central formar professores modernos, voltados para expandir seus conhecimentos para toda a mão de obra regional, a partir de métodos de ensino direcionados para a preparação do cidadão para a vida. Além disso, tal escola tinha um alcance bastante amplo, incluindo os filhos de famílias mais pobres, como comenta a professora Palmira Guanais (2017), aluna da Escola Normal de Caetité entre 1946 e 1950. Outros autores reforçam o discurso, como se lê na citação abaixo:
Vi a transformação por que passou Caetité e a Região com uma Escola Normal gratuita e portanto ao alcance de todos, bem estruturada e de ótima formação educativa, aberta aos que só precisavam querer, para estudar, num meio pobre e longe da Capital. Participei desta valorização humana que atingiu todos os setores da sociedade e que, em certa época, era expressa pelo slogan: Caetité exporta professores. Os frutos deste trabalho se traduzem no nível de vida, pela multiplicação dos Ginásios e Escolas Normais em todas as cidades da região, pelo elevado número de estudantes universitários e pelos já diplomados, filhos de professores formados pela Escola Normal de Caetité direta, ou indiretamente. (Lima, 1977 apud BAHIA, 2007, p. 231).
O currículo intensivo da escola normal se constituía de provas escritas e orais, durante cinco anos, incluindo não apenas os estudos tradicionais de português, álgebra, geografia, literatura, biologia, ciências com laboratórios de pesquisa etc., mas também estudos sobre higiene escolar e geral, profilaxia (doenças infecciosas) e puericultura, baseados nos trabalhos realizados por Martagão Gesteira . Além disso, os estudantes eram orientados sobre acompanhamento de partos, amamentação natural, tratos com as crianças, aulas teóricas de práticas de agricultura etc. (GUANAIS, 2017).
Segundo Guanais (2017), o sonho de Anísio Teixeira era que as atividades educacionais fossem oferecidas a todas as classes sociais, a filhos e filhas tanto de coronéis quanto de empregadas domésticas. A intenção era que as pessoas formadas voltassem para seus lugares de origem e se transformassem em diretoras das escolas. Ainda segundo Guanais e Santos (1976), os professores eram oriundos de Salvador e de outras regiões da Bahia, enquanto que os alunos se originavam de distintas localidades, na época ainda pertencentes a Caetité, mas hoje englobando grande parte dos municípios da Mancha Azul.
O prestígio de Anísio Teixeira espalhou-se pelo Brasil, como diretor de Instrução (ensino), hoje equivalente ao cargo de secretário de Educação da Bahia, entre 1924 e 1928, no governo de Góes Calmon. Suas ações resultaram em fortes influências sobre o ensino brasileiro, sendo responsável pela fundação da Universidade do Distrito Federal (até então no Rio de Janeiro), em 1938. Suas iniciativas para a educação no país são vistas “[…] como uma das maiores intervenções concentradas em educação e que têm repercussão até os dias de hoje” (LIMA, 2007).
Um ponto importante a ser destacado são as relações entre as escolas da região e a Igreja na época. Embora fossem instituições distintas, tiveram comportamentos complementares e implementaram ações voltadas para a formação social da região, as quais, em parte, permanecem até os dias atuais. Naquele momento, a Igreja não se caracterizava apenas pela pregação, mas também pelas realizações práticas (construção de hospitais, escolas e seminários), incorporando inclusive o estímulo à organização de sindicatos de trabalhadores e realizando ações católicas operárias. Segundo Haroldo Lima (2017), a força política do bispado nessa região (principalmente em Caetité) era decisiva para a realização de diversos projetos. Segundo Guimarães (2012), já na década de 1920, Caetité se destacava não tanto por sua dinâmica econômica, mas sim por sua força religiosa e seu consequente poder. “O estabelecimento mais importante desta zona é a cidade episcopal Caetité, na região das nascentes do rio de Contas. É notável em todos os sentidos por sua posição e importância” (QUELLE, 1929 apud GUIMARÃES, 2012, p. 39).
Em síntese, as ações de educação empreendidas na primeira metade do século XX na região, voltadas para a formação para a vida (baseada no pensamento defendido por Anísio Teixeira), e a atuação da Igreja, com suas realizações também associadas à organização social, podem ter criado um lastro importante e permanente do ponto de vista do comportamento da sociedade nessa grande Mancha Azul, contribuindo para a manutenção de indicadores demográficos relativamente melhores e diferenciados do restante dos municípios baianos atualmente.
Algumas questões:
- Os investimentos em educação, principalmente a escola normal e o Instituto Anísio Teixeira, foram estruturantes para os processos que resultaram nos relativamente baixos índices de vulnerabilidade regional e dos cinco municípios?
Já em finais da década de 1940, o retorno de Anísio Teixeira à Bahia como secretário estadual de Educação, durante o governo de Otávio Mangabeira, possibilitou a ampliação de suas ações, com o intuito de criar diversos institutos de educação e ampliar o projeto dos institutos Anísio Teixeira.
Como afirmam Menezes, Mattos e Santos (2016, p. 15), Anísio Teixeira participou de importantes ações e movimentos brasileiros pela educação no “[…] Distrito Federal (Rio de Janeiro), pela UNESCO e, sobretudo, articulara-se nacional e internacionalmente em torno às propostas da Escola Nova e da Escola Única”. Ao longo dos anos, Anísio chegou a assumir cargos de liderança nacional dos educadores da Associação Brasileira de Educação (ABE), lutando inclusive pelo reconhecimento do direito à educação nas constituições brasileiras de 1934 e 1946 (MENEZES, MATTOS; SANTOS, 2016). Esse cabedal de informações e conceitos renovados e ampliados contribuiu para que Anísio Teixeira, ao assumir novamente a Secretaria de Educação da Bahia, pudesse realizar uma nova transformação no sistema educacional no estado, implantando um modelo da “escola para a República, para o Mundo Moderno” (MENEZES; MATTOS; SANTOS, 2016, p. 15). Ainda segundo os autores, as propostas inovadoras de Anísio extrapolaram o tema específico da educação para conceber estratégias regionais de desenvolvimento, com “a agregação de dois polos regionais”, nos quais seriam implantados os centros de educação. Tal visão territorial seria pautada no conceito de “região ecológica”, fundamentada na perspectiva de “relações sociais e raciais”, associadas às demandas por educação. Isso pressupõe reconhecer que o enfrentamento dessa questão partira do princípio de que havia distintas características que conviviam em determinados espaços territoriais na Bahia.
Especificamente nas questões vinculadas às políticas educacionais, foi sugerida a escola primária de tempo integral, “[…] que formasse o homem comum, contemplando o conjunto de aspectos de sua personalidade”. Os centros de educação foram localizados em dez cidades-polo e ofereciam desde o ensino pré-escolar até a escola normal, sendo criados em 1950, incluindo a cidade de Caetité.
É importante realçar que “[…] desde a primeira turma em 1929 até o presente (1974), a Escola Normal [transformada e reorganizada para formar o Instituto Anísio Teixeira na década de 1950 e posteriormente chamado de Complexo Escolar Anísio Teixeira] diplomou cerca de 2.100 jovens, realizando um extraordinário trabalho de educação e de melhoria das condições do meio sertanejo” (SANTOS, 1976, p. 34).
Entretanto, o golpe de 1964, como marco de uma profunda alteração na condução das políticas educacionais no Brasil, afetou de forma significativa o ensino em todos os seus níveis. Além do exílio de intelectuais, técnicos e lideranças políticas importantes, entre eles Anísio Teixeira, alteraram-se os projetos pedagógicos, tornando-os mais utilitários e voltados para o ensino de conhecimento “especializado”. Observou-se também um recuo da tendência de defesa do ensino público gratuito para todas as faixas de renda, a qual era tão incisiva entre os manifestos intelectuais da década de 1930. Embora as escolas públicas tenham sido disseminadas por todo o território baiano, os métodos de ensino defendidos por Anísio Teixeira se dissiparam, ganharam objetividade, e as lideranças perderam força, tal como ocorreu no Brasil entre as décadas iniciais do século XX.
Nesse sentido, levantou-se a hipótese de que a conformação da Mancha Azul, que representa a existência de condições especiais de comportamento social, tem como base a absorção, por parte de sua população residente, de conhecimentos adquiridos através de uma educação holística e preocupada com a formação dos indivíduos para os desafios impostos pela vida cotidiana e que buscavam o fortalecimento dos valores morais, solidários e éticos para com o próximo.
Entretanto, acredita-se também que parcela significativa desse conhecimento não consegue ser captada ou mesmo mensurada pelos indicadores tradicionais de educação, tendo em vista que tais pesquisas estão estruturadas para sistematizar as condições de ensino, considerando, muitas vezes, os seus aspectos mais objetivos e diretamente relacionados com os ensinos especializados e analíticos. Tendo em vista a transformação das escolas brasileiras, cada vez mais sistemáticas e focadas em especialidades de conteúdo, acredita-se que grande parte dos conhecimentos propagados pelas antigas escolas durante o período pré-ditadura militar deixaram de ter representatividade nos currículos escolares da região. Contudo, não se pode ignorar os seus possíveis efeitos sobre as condutas e as formas de se viver nessas áreas. Acredita-se que, apesar de não mais presente como disciplina escolar, grande parte dessa “antiga” concepção humanística e preocupada em solucionar os principais problemas da região (na saúde, no saneamento ou mesmo na moral) permanece sendo reproduzida entre os moradores dessa região, como ensinamentos familiares, de educação doméstica, de natureza tácita.
Essa hipótese pode contribuir para compreender o fato de a Mancha Azul compartilhar, ao mesmo tempo, um comportamento social diferenciado, que se reflete em condições relativamente melhores de vida (sob o aspecto demográfico), e desempenhos não destacáveis sob o aspecto da educação. Segundo o relatório do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável da Serra Geral, em referência ao ano 2000, “[…] apesar da Região ter apresentado uma redução da taxa de analfabetismo mais significativa que aquela verificada no Estado, esta taxa ainda continuava num patamar superior ao do Estado” (BAHIA, 2007, p. 51). Além disso, segundo o plano, “[…] a distribuição percentual dos estabelecimentos por nível de ensino, na Região, foi bastante próxima à do Estado […] e em 2002, cerca de 83,0% dos estabelecimentos achavam-se localizados na área rural” (BAHIA, 2007, p.56 e 57).
Tal possível contradição indica que os processos mais recentes de educação formal podem não ter sido os maiores responsáveis pelo diferencial comportamental das pessoas da região denominada de Mancha Azul, mas sim o legado do antigo ensino nessas áreas. Nesse sentido, o estudo questiona se é possível que o comportamento social diferenciado da Mancha Azul tenha sido resultado da influência dos processos pedagógicos aplicados pelo seu ensino integrado, fruto das ideias desenvolvidas e perpetuadas pela escola normal e suas subsequentes transformações (entre 1920 e 1960), nas quais a preocupação com a formação cidadã de seus alunos era um elemento importante dentro da grade curricular.
Segundo Menezes (2017), é possível que as ideias de Anísio Teixeira tenham sido fortemente implantadas na região de Caetité, em função das suas aproximações culturais, durante o largo período em que ele liderou e teve capacidade de tomar decisões sobre os direcionamentos dos centros educacionais.
GUANAIS, Palmira. Entrevista concedida a Edgard Porto, Salvador, 31 jul. 2017.
LIMA, Haroldo. Entrevista concedida a Edgard Porto. Salvador, 9 ago. 2017.
MENEZES, J. M. F.; MATTOS, W. R.; SANTOS, E. O. P. Uma pesquisa sobre vida social no estado da Bahia. Salvador: EDUFBA, 72 p. 2016.
MENEZES, Jaci Maria Ferraz de. Entrevista concedida a Edgard Porto, Salvador, 31 jul. 2017.
SANTOS, H. L. Caetité, Pequenina e Ilustre. Brumado: Tribuna do Sertão, 48 p. 1976.