Painel Lideranças

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A influência dos discursos da intelectualidade e dos coronéis “letrados” para uma possível transformação no padrão sociocultural da Mancha Sudoeste – final do século XIX e início do século XX

Desde o século XIX, Caetité foi reconhecida por mostrar traços culturais diferenciados de outras cidades da Bahia. Teodoro Sampaio (1905) a descreve, na década de 1880, como uma cidade “celeiro próvido destes sertões” (p. 109), onde “pratica-se a irrigação em larga escala” (p.11), com um “aspecto de côrte do sertão”, na qual havia uma “boa e culta sociedade, muito urbanidade e delicadeza” (p. 164).
Segundo Haroldo Lima, descendente da família de Rodrigues Lima e de Deocleciano Teixeira – lideranças intelectuais e políticas da região no início do século XX –, a formação desse polo cultural se deu com a fuga de alguns inconfidentes da cidade de Diamantina e arredores, em Minas Gerais (LIMA, 2017).

Como base na influência das lideranças da região de Caetité, tornou-se forte um discurso de modernidade, pautado nas ideias do Iluminismo francês do século XVII, de filósofos alemães, de pensadores da economia neoclássica e daqueles que buscavam alastrar novas formas de agir, com comportamentos mais racionais e liberais do século XIX.

Guimarães (2012), comentando sobre os formados na chamada “Escola de Recife”, afirma que eles “[…] tiveram decisiva influência de ideias do positivismo de Comte, do transformismo de Darwin, do evolucionismo de Spencer, do intelectualismo de Taine e Renan” (SANTOS, 2010 apud GUIMARÃES, 2012, p. 62).

Esse período também coincide com o pleno desenvolvimento da segunda Revolução Industrial, cujas repercussões se revelavam em novas atividades nos países mais desenvolvidos e geravam um fluxo de investimentos em diversos países periféricos, a exemplo do Brasil. Entretanto, todas as nações estavam submetidas ao discurso do consumo de mercadorias como símbolo da modernidade: automóveis, bicicletas, energia elétrica, utensílios diversos para as práticas cotidianas e principalmente para a produção agropecuária etc.

Essas ideias deram sustentação à expansão dos fluxos capitalistas, à aceitação de padrões de consumo de produtos industrializados, à utilização de novas técnicas capazes de domar a natureza, ganhar produtividade, com a incorporação dos avanços tecnológicos, e “favorecer uma melhor qualidade de vida”, o que até hoje se espera acontecer.

Ainda segundo Guimarães, certamente um dos efeitos mais significativos da modernidade foi lançar homens e mulheres num turbilhão de desejos de “autotransformação e transformação das coisas em redor” (BERMAN, 1990 apud GUIMARÃES, 2012, p. 15).

Algumas dessas ideias foram repassadas diretamente por agentes ligados às empresas europeias que exploravam minérios na Chapada Diamantina (alemães influenciaram bastante o pai de Deocleciano Teixeira) e pelo alastramento geral de novos comportamentos que serviram de base ideológica para a proclamação da República.

Os discursos eram consistentes. Embora pareçam não se justificar pela prática dos investimentos e seus resultados para o desenvolvimento econômico da região, eles se refletiram no comportamento social até os dias atuais.

Os discursos da modernidade, nesta fase do desenvolvimento capitalista, compreendiam também a formação de mão de obra para atuar nesse “novo mundo”, nessa nova forma de viver. Além disso, muitos intelectuais estendiam e diversificavam seus discursos tentando alcançar faixas de renda mais baixas, assim como buscavam modelos de cidades mais humanas. Entretanto, o que ficou evidente é que algumas dessas promessas não se concretizaram. Outras foram implementadas por intelectuais envolvidos com o poder político nacional e estadual e parecem ter deixado reflexos até os dias atuais.

Mais de uma vez patenteamos a virtualidade dos elementos dos nossos futuros progresso e opulencia, e que apenas faltam-nos- uma severa educação do proletariado, em ordem a ser radicado em nosso meio o habito de melhores e mais consentaneos methodos de trabalho; uma boa distribuição da propriedade territorial; mais serias garantias aos direitos da população rural; faceis meios de transporte que dêm elasterio às operações commerciaes e valorisação aos productos agricolas e acquisição de aperfeiçoados instrumentos que facilitem o trabalho (SANTOS, p. 9 e 10 apud GUIMARÃES, 2012).

Alguns questionamentos sobre a análise

  • É possível que o discurso moderno da intelectualidade tenha influenciado o padrão cultural e comportamental da população residente na Mancha Sudoeste?
  • Em que medida esses discursos foram postos em prática?
02
A passagem da riqueza e da cultura das lideranças da fase da mineração à agropecuária na região de Caetité – final do século XIX e início do século XX

Dessa região surgiram, na primeira metade do século XX, importantes personagens da política nacional e estadual. Segundo Guimarães (2012), como nomes de maior importância no início do século XX na região de Caetité, podem ser destacados:

  • José Antônio Gomes Neto (Barão de Caetité)
  • Joaquim Manoel Rodrigues Lima (médico, intendente municipal e governador do estado da Bahia),
  • João Antônio dos Santos Gumes (autodidata, professor, escritor e editor do jornal A Penna, secretário amanuense e coletor estadual),
  • Marcelino José das Neves (pedagogo, professor e escritor, delegado escolar da circunscrição de Caetité),
  • Deocleciano Pires Teixeira (intendente municipal), pai de Anísio Spínola Teixeira (educador e escritor, secretário nacional de ensino),
  • Aristides de Sousa Spínola (formado em direito, governador da província de Goiás e deputado do Congresso Nacional),
  • César Zama (médico e escritor, deputado provincial).

Ao que parece, a riqueza das famílias veio da fase da mineração no sul da Chapada Diamantina. As árvores genealógicas mostram o entrelaçamento, com o casamento entre os filhos das quatro famílias mais ricas e importantes, que repassavam as heranças preservando grandes patrimônios: Teixeira; Spínola, Rodrigues Lima e Gomes.

Árvore genealógica das principais famílias de Caetité entre o final do séc. XIX e o início do séc. XX

Fonte: Elaboração própria com base em Santos (1976).

Esse processo ocorreu no final do século XIX, em um contexto econômico de transição entre a predominante produção mineral e a insurgente agropecuária, que passou a assumir a hegemonia das atividades econômicas da região de Caetité e de Rio de Contas, possivelmente devido aos benefícios dos investimentos em infraestrutura urbana e rural realizados na região.

Esses dois polos já eram citados por Teodoro Sampaio (1905) como áreas que apresentavam atividades de agricultura irrigada, inicialmente atreladas à produção de algodão e arroz, sendo mais tarde reestruturadas para produzir frutas para exportação, nos municípios de Livramento de Nossa Senhora e Dom Basílio, vizinhos a Rio de Contas (BAHIA, 2007).

As lideranças que atuavam regionalmente, embora concentradas na cidade de Caetité, assumiram postos políticos importantes no país e atuaram na atividade agropecuária, em alguns produtos com maior importância para os mercados agrícolas da década de 1920: cana-de-açúcar, café, arroz, algodão, borracha, mate e o gado bovino (BUAINAIN; SOUZA FILHO, 2014).

Desde o final do século XIX, a força política dessas lideranças regionais, formadas a partir das influências intelectuais oriundas da Europa, as quais deram concretude aos denominados “coronéis letrados”, se reproduziram com certa dispersão e relativa redução das suas possibilidades de transformação. A principal via de atuação dessas lideranças se revelava na atração de investimentos do governo federal para a região, até o golpe de 1964.

Embora a economia da região tenha se desenvolvido gradativamente durante esse período, a partir de 1964 as forças políticas regionais articuladoras e responsáveis pela atração de investimentos ficaram submetidas a um rigoroso controle das manifestações políticas e culturais no país, induzindo o aparecimento de novos líderes representantes da esfera federal, que passaram a controlar os chamados “chefes políticos” regionais.

Essa nova fase inaugurou o predomínio dos grandes projetos estruturantes, voltados para fortalecer a “integração e a segurança nacional” por meio da descentralização dos investimentos industriais em direção ao entorno das metrópoles nordestinas e do sul do Brasil, o que incluiu incentivos fiscais e importantes investimentos em infraestrutura de interligação das grandes regiões brasileiras.

No caso da Bahia, esse processo se refletiu na concentração do desenvolvimento econômico na região de Salvador. Como consequência, observou-se que a centralização do controle político na esfera nacional provocou a perda de força das políticas regionais e das influências das lideranças locais nas esferas mais elevadas de poder. Todos os investimentos realizados durante esse período contribuíram para marginalizar, ainda mais, a região de Caetité e Rio de Contas do processo de desenvolvimento da Bahia.

Pode-se dizer que, em 1964, encerrou-se o “projeto de desenvolvimento” pensado pelas lideranças intelectualizadas formadas desde o final do século XIX em Caetité. A partir daí, iniciou-se uma nova fase de controle da política nacional, apoiada pelas forças de segurança militar e associada com lideranças forjadas politicamente em dois grandes partidos pelo regime ditatorial brasileiro no pós-1964 e que vai até a década de 1980. Nesse novo contexto, surge uma tendência de divisão dos partidos políticos da época e uma reorganização das suas bases regionais. Além disso, em função do processo de globalização, que ocorreu de forma mais intensa no Brasil na década de 1990, as grandes lideranças políticas começaram a operar de forma subordinada aos interesses dos grandes conglomerados de empresas multinacionais. Isso contribuiu para reduzir a capacidade de atuação dos governos regionais e locais no atendimento de interesses ligados às forças políticas representativas, voltadas para o desenvolvimento local.

Como consequência, as forças políticas da região, localizadas nos municípios da Mancha Sudoeste, não parecem ter montado uma estratégia de desenvolvimento que proporcionasse a continuidade dos processos anteriores e não construíram novos caminhos diferenciados para a região.

Alguns questionamentos sobre a análise:

  • Qual foi o papel dessas lideranças do início do século na atração de investimentos voltados para o desenvolvimento regional e que repercute até os dias atuais na formação do espaço denominado de Mancha Sudoeste?
  • Quais foram as principais lideranças responsáveis pela atração do DNOCS para a região em 1953, o que resultou em investimentos estruturantes em irrigação que permitiram a produção atual de frutas? Eram lideranças locais?
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A influência da família do médico “coronel” Deocleciano Teixeira na transformação socioeconômica da Mancha Sudoeste, entre o início e meados do século XX

É importante salientar que não só a família Teixeira mais outros intelectuais e outras famílias deram importantes contribuições para a atração de investimentos para a região. Tais famílias além de viabilizar investimentos no setor produtivo e em elementos de infraestrutura urbana e regional, também trabalharam com projeto de reforma agrária, segundo depoimento da professora Jaci Menezes, o que pode ter colaborado para gerar indicadores de gini fundiário diferenciados de outras regiões da Bahia, conforme analisamos no Painel Economia.

O que deve também ser destacado é o fato de que as lideranças regionais, desde o século XIX até as décadas iniciais do século XX, terem dado um destaque significativo à formação educacional. Ainda segundo a professora Jaci, tais lideranças incentivavam as premiações dos alunos nas festas religiosas (pedagogia das festas até a década de 1920).

A figura do Deocleciano Teixeira teve um destaque na atração de investimentos em educação, o que foi perpetuado pelo seu filho Anísio Teixeira. Ainda segundo a professora Jaci Menezes, uma parcela de jesuítas portugueses expulsos de seu país durante a instauração da República em Portugal, em 1920, foi atraída por Deocleciano para a Caetité, com o fim de fundar escolas onde os mesmos seriam educadores para a população local.

Segundo Guimarães, citando Araújo, “[…] os agrônomos formados na Escola Agrícola da Bahia, como Mário Teixeira, geralmente eram orientados a defender a vocação agrícola brasileira vinculada ao papel que desempenhariam como agentes capazes de disseminar a luz da ciência na lavoura”. Por isso, a eles caberia “[…] na ordem social agrária a ocupação de todos os postos de direção inerentes à atividade agrícola” (ARAÚJO, 2010 apud GUIMARÃES, 2012, p. 64).

Ainda segundo Guimarães, esses agrônomos se encarregariam da “chefia” da agricultura. Dentro dessa concepção era defendida a tese de que os trabalhadores agrícolas deveriam ser “[…] instruídos na prática agrícola, caso contrário ficariam condenados em sua ignorância” (GUIMARÃES, 2012, p. 64).

Um ponto importante a se destacar é que todos os filhos de Deocleciano do sexo masculino foram induzidos a buscar conhecimentos fora do Brasil e orientados a voltar com o fim de aplicar os recursos da modernidade na região. Isso pode ser constatado pelas ações realizadas pela família. A grande maioria desses filhos atuou em altos cargos na administração pública no Legislativo e no Executivo nacional e baiano.

Como exemplo, Oscar Spínola Teixeira, que, segundo Guimarães (2012), teve formação em engenharia civil e eletromecânica pela Escola Politécnica do Instituto Mackenzie (São Paulo), no ano de 1919, especializando-se em engenharia e motores no ano de 1922, em Pitisburg (EUA). Dentro de sua trajetória profissional, destacam-se os seguintes pontos:

  • Instalou o serviço de água encanada em Caetité, 1920
  • Foi inspetor geral do telégrafo na Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, 1923. Criou a primeira usina de algodão e uma técnica de alimentação para gado com caroços de algodão, Guanambi-BA
  • Instalou o serviço de luz em Caetité, 1925
  • Construiu a estrada de Contendas-BA a Caetité, 1927
  • Instalou o serviço de luz elétrica em Urandi-BA, 1928, em Palmas de Monte Alto-BA e em Jacaraci-BA, 1950
  • Eleito deputado estadual em 1925-1926, reeleito 1927-1928
  • Vereador em Guanambi pela Ala Autonomista em 1934
  • Deputado estadual Constituinte pela União Democrática Nacional (UDN), 1947-1951;
  • Suplente de deputado estadual pelo Partido Social Democrático (PSD), 1951-1955, assumiu por diversos períodos.

A família de Deocleciano Teixeira teve uma participação significativa ao interferir politicamente e canalizar investimentos para a região, principalmente através das ações de Oscar Spínola Teixeira e Anísio Teixeira, reconhecido como um dos mais importantes educadores da Bahia.

Alguns dos investimentos realizados nessa região tinham como objetivo montar um sistema de infraestrutura regional por meio de políticas locais. Outros investimentos estiveram voltados para aspectos estruturantes, como a implementação de um sistema de educação pelas iniciativas de Anísio Teixeira, entre os anos de 1920 e 1960, o que pode ter contribuído para conformar as características atuais da denominada Mancha Sudoeste, que corresponde ao cluster demográfico com maior destaque na Bahia.

Algumas questões sobre a análise:

  • Será que os excedentes da mineração contribuíram para a formação cultural regional, através de algumas famílias, criando as bases que explicam os baixos índices de vulnerabilidade social dos dias atuais?
  • Que outras lideranças podem ter tido responsabilidade na formação das condições sociais da região nas últimas décadas?
  • Quais foram as suas ações “coordenadas” (?) e em que tempo e lugar?
04
Referências

BAHIA. Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional. Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável da Região Serra Geral. Salvador, 2007. 338 f.

BUAINAIN, A. M.; SOUZA FILHO, H. M. de. Censos Agropecuários e a política agrícola no Brasil: 1920-2006. In: SENRA, N. C. de. O Censo entra em campo: O IBGE e a história dos recenseamentos agropecuários. Rio de Janeiro: IBGE, p. 233-255, 2014.

GUIMARÃES, E. M. B. Um painel de cangalhas e bicicletas: os descaminhos da modernidade no Alto Sertão da Bahia (Caetité 1910-1930). 2012. 150 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Franca, 2012.LIMA, Haroldo. Entrevista concedida a Edgard Porto. Salvador, 9 ago. 2017.

LIMA, Haroldo. Entrevista concedida a Edgard Porto. Salvador, 9 ago. 2017.

SAMPAIO, Teodoro. O Rio São Francisco: Trechos de um diário de viagem e a Chapada Diamantina (1879-1880). São Paulo: Escolas Profissionaes Salesianas, 1905.

SANTOS, H. L. Caetité, Pequenina e Ilustre. Brumado: Tribuna do Sertão, 48 p. 1976.

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